Algumas semanas atrás li uma matéria no site “Wine Pair” (*)
sugerindo que todos nós, enófilos de carteirinha, poderíamos realizar o
sonho de nos tornarmos vinhateiros, em casa, produzindo o nosso próprio
corte Bordalês a partir de varietais comprados no mercado.
Confesso que fui seduzido pela ideia. Com
se isto não bastasse, recebi esta mensagem da leitora Luiza Samara, de
Curitiba, que reproduzo abaixo:
“Tuty,
Li quase todas as suas colunas e gostei da maioria. Não por defeito delas, mas por interesse meu.
Vi que às vezes o enólogo, por uma
razão ou outra, mistura uma ou duas uvas para obter um vinho de melhor
qualidade, isso seria um corte, não?
Bem, considerando isso, lá vai minha pergunta:
Se eu misturar dois vinhos o que acontecerá, além de estragar os dois? rs.
Explico minha pergunta: hoje no
almoço em casa de amigos, bebi um vinho argentino que era um corte de
Merlot, Cabernet Sauvignon e Malbec e estava muito bom. Acompanhou um
cozido e desceu muito bem.
Dá pra entender que misturar uvas é
uma coisa e misturar vinhos é outra, mas com certeza estragaria a taça
de vinho, mesmo em qualquer percentual?
A propósito, adoro vinhos verdes.
Abraços”.
(A resposta completa a este e-mail está depois da Dica da Semana. Leiam, também, esta coluna sobre os cortes, publicada em Fevereiro/2015:
O que serviu de estopim para o experimento que passo a descrever em seguida foi esta frase de Luiza:
“Se eu misturar dois vinhos o que acontecerá, além de estragar os dois”?
Decidi que era hora fazer algumas
misturas, com vinhos comprados no mercado,demonstrando que isto pode
ser feito sem sustos. Basta seguir algumas recomendações. Diversão e
aprendizado garantidos!
Convidei José Paulo e Valter para participarem do experimento. Seriam três opiniões sobre os diversos resultados.
Um equipamento mínimo se faz necessário:
um pequeno decanter, para receber e homogeneizar as misturas e um copo
graduado para dosar. Pode ser este de cozinha mesmo, mas escolham um que
tenha graduações de 50ml pelo menos.
No nosso caso dispúnhamos de um Becker com marcações de 20
ml, mas foi um luxo. Medidas padrões de cozinha, xícaras ou copos também
podem ser usados. Basta ter imaginação.
O segundo passo foi selecionar os vinhos. Não
pretendíamos nada muito exótico nem elaborar grandes volumes. Decidimos
por usar três garrafas de 375 ml, compradas no supermercado perto de
casa:
- Dal Pizzol Merlot 2012 (Brasil);
- Finca Negra Reserva Cabernet Sauvignon 2012 (Miguel Torres – Chile);
- Dona Dominga Reserva de Família Carménère 2013 (Casa Silva – Chile).
A regra foi uma só: vinho varietal, ½ garrafa. O que estivesse à venda.
Alguns acepipes, torradas e água serviram de coadjuvantes numa tarde muito agradável.
O primeiro passo foi provar individualmente os 3
vinhos e anotar todas as características, assim poderíamos comparar
objetivamente as mudanças.
Merlot: coloração rubi claro, muito
aromático com notas de ameixa preta e cassis. Percebe-se que não passou
por madeira. Taninos educados e presentes. Corpo médio, muito redondo.
Bom vinho.
Cabernet Sauvignon: coloração rubi escuro
com reflexos violáceos. Aromas herbáceos e “sous bois” (chão do bosque)
típicos da casta. Corpo médio, redondo, taninos presentes e agradáveis.
Boa boca, com notas de alcaçuz. Muito bom.
Carménère: coloração rubi intensa com
reflexos violáceos. Aroma agradável de frutas escuras e herbáceo, “Sous
Bois”, discreto. No palato era persistente e intenso. Taninos marcantes e
quase aveludados. Notas de banana ou baunilha e um final de boca que
remetia à cinza ou fumaça. O melhor dos três. Surpreendeu.
Neste ponto, como não havia nos vinhos
degustados nenhuma característica que merecesse uma tentativa de
correção, optamos por fazer as nossas misturas apenas com o intuito
educativo: primeiro aos pares e depois em trios.
Conforme o resultado,
optaríamos, ou não, por alterar proporções.
1º corte: 50% Cabernet e 50% Merlot – clássico bordalês.
Resultado: a cor ficou mais intensa, com predominância dos aromas herbáceos do Cabernet.
Todos concordaram que o vinho ficou
melhor, com mais sabor do que em cada um, individualmente. Valter
mencionou que compraria um vinho como este. O resultado foi tão positivo
que decidimos variar as proporções para a próxima tentativa.
2º corte: 40% de Cabernet e 60% de Merlot
Esta foi a mistura mais difícil de fazer e
o copo graduado ajudou muito. Foram 50 ml de Merlot e 30 ml de
Cabernet, aproximadamente.
A coloração ficou inalterada em relação à
anterior, mas surgiu um inesperado aroma floral que encantou e intrigou
a todos. Afinal, não estava presente em nenhum dos vinhos na prova de
controle. José Paulo logo classificou como Rosas.
Sensacional!
Nítida predominância do Merlot, como esperado. O resultado ficou muito melhor que o imaginado.
3º corte: 60% de Cabernet e 40% de Merlot
Escolha quase óbvia, invertemos a proporção da mescla anterior.
A coloração se tornou um pouco mais
clara. Novamente se percebia o aroma de rosas, ainda predominante. Os
taninos ficaram mais intensos e mais ásperos.
Concordamos que era menos
interessante que o anterior.
Após algumas considerações, concluímos que o corte 50/50 seria a melhor escolha.
4º corte: 50% Carménère e 50% Merlot
Houve um predomínio do Carménère tanto na
cor quanto na parte aromática: cor violácea, aromas de ameixa preta e
alcaçuz, mas todos discretos. Um pouco do “sous bois” foi percebido
também. Boa complexidade.
Na boca o vinho se mostrou muito bom,
agradável, boa acidez. Presença de cerejas maduras. Outra surpresa –
este não é um corte usual nas vinícolas.
5º corte: 50% Cabernet e 50% Carménère
Resultou numa bonita cor rubi escura e
intensa. Na parte aromática predominaram as características do
Carménère: ameixa preta; herbáceos como feno cortado. No palato ficou
extremamente agradável, bem gastronômico, com taninos domados e notas de
baunilha (madeira). Ótima acidez.
O melhor vinho que obtivemos!
Para encerrar o experimento, elaboramos
mais três cortes, com todos os vinhos em diferentes proporções. Ficaram
desinteressantes, nenhum se destacou. Eis um resumo desta última parte:
6º corte: partes iguais dos 3 vinhos
A coloração final ficou mais clara.
Nítida presença de aromas tostados ou defumados indicando a presença de
madeira. Deixado na taça aerando, apresentou aromas herbáceos. Paladar
indefinido, embora com boa acidez.
Tânico e sem graça.
7º corte: 50% Merlot, 25% Cabernet e 25% Carménère
Bonita coloração rubi escura, intensa com
reflexos violáceos. Muito brilho indicando acidez alta o que se
confirmaria no palato. Pouco aromático com predominância de notas
herbáceas.
No paladar se mostrou muito ácido, quase cítrico ou azedo. Desagradável.
8º corte: 50% Cabernet, 25% Merlot e 25%Carménère
Uma tentativa de reverter o insucesso
anterior. A coloração ficou mais escura, rubi vermelho. Mais aromático
que os anteriores, apresentou intensas notas herbáceas, ameixa preta e
cassis (doces ou compotas). O paladar era desinteressante, não disse a
que veio.
Conclusão
Em função do resultado pouco animador das
misturas em trio, decidimos que não teria sentido experimentar um
último corte com predominância do Carménère. Já havíamos percebido que
este era um vinho de qualidade superior aos demais, impondo sua presença
nas mesclas onde participou. No guia Descorchados de 2015 este vinho
recebeu 89 pontos. Os outros dois nem foram mencionados...
Este experimento foi totalmente empírico,
sem nenhum caráter científico ou exato. Apenas um exercício didático
que nos encantou e que certamente será repetido.
Uma última recomendação: não esperem que
estes resultados se repitam com outros vinhos das mesmas cepas. Cada
experimento será único.
Este é a graça desta prova. Junte os amigos e faça uma reunião diferente, divertida e cheia de surpresas.
Dica da Semana: como o “nosso” melhor vinho ainda não está à venda, a indicação fica com este protagonista:
Dal Pizzol Merlot 2012
Cor intensa, potente, vermelha rubi com tons violáceos.
Aroma pronunciado com notas de ameixa e cassis. Sabor
persistente, com bom “volume de boca”, encorpado, harmônico com taninos
aveludados.
Harmonização: Vitela, rosbife, bacalhau, massas com
molhos de carne, aves bem condimentadas, pato ou ganso, carne de porco,
cordeiro, patê de Foie Gras, suflês, queijos tipo gorgonzola, brie,
roquefort, port salut.
Resposta ao e-mail:
Luiza,
Boas questões estas que você
coloca, este é um dos assuntos mais interessantes para escrever na minha
coluna de vinhos. Tenho umas ideias em andamento sobre este tema, uma
delas vai tocar exatamente neste ponto.
Alguns esclarecimentos são necessários, vou fazê-los usando o seu próprio texto.
1 - você menciona: "Vi que às
vezes o enólogo por uma razão ou outra, mistura uma ou duas uvas para
obter um vinho de melhor qualidade, isso seria um corte, não?"
Sim isto é um corte, também chamado de assemblage, blend ou mescla.
O ponto importante são as razões pelas quais o enólogo ou um winemaker decide fazê-lo.
A principal é que os vinhos cortados são produtos superiores aos vinhos varietais (obtidos por vinificação de uma única casta).
Basta olhar para as listas de
melhores vinhos que você perceberá que raramente encontramos um vinho
monocasta nestas relações (Pinot Noir é a exceção).
Mesmo se aparecer, aposto que é
um corte disfarçado: na maioria dos países produtores, um vinho para ser
classificado como varietal precisa ter um % mínimo da casta, podendo
receber adição de outras vinificações. Por exemplo, os famosos Cabernet
da Califórnia recebem até 10% de Merlot ou outra uva. Na Argentina, os
seus deliciosos Malbec só precisam ter 70% desta casta.
Esta prática é tão comum que
quando um vinho é realmente elaborado com uma única uva, recebe a
indicação 100% XXX num dos rótulos.
Para seguir na explicação, fixe esta ideia: o enólogo ao decidir por um corte busca um vinho melhor.
Óbvio que outros fatores podem
provocar esta decisão: safras ruins, produções pequenas que não
justificam um engarrafamento, etc. Afinal, por mais artistas que sejam
os vinhateiros, isto ainda é um negócio que precisa ser bem gerido e dar
lucro...
2 - duas frases suas:
- "Se eu misturar dois vinhos o que acontecerá, além de estragar os dois?"
- "Dá pra entender que
misturar uvas é uma coisa e misturar vinhos é outra, mas com certeza
estragaria a taça de vinho, mesmo em qualquer percentual?"
Não é bem assim: Quem disse que ao misturar dois vinhos vamos estragá-los?
Deixando os possíveis erros de
fora desta história, esta é a principal técnica de elaborar um corte:
misturam-se duas (ou mais) vinificações.
Um enólogo passa algum tempo num
laboratório dosando e experimentando diferentes misturas até chegar a
seu objetivo que pode ser um vinho com menos tanino, ou mais ácido, com
fruta, com madeira, enfim, inúmeras possibilidades.
Resolvida a equação, as
diferentes partidas de vinhos serão misturadas na proporção indicada e
passarão por processos adicionais de estabilização, filtragem,
clarificação, amadurecimento e, um dia, engarrafadas.
Só para não deixar você sem uma resposta completa, está não é a única técnica de se fazer uma mescla.
Pode se obter bons resultados com
a co-fermentação: as uvas são fermentadas juntas obtendo-se uma
vinificação já na proporção desejada.
É muito mais complicada pois não
há como controlar tudo o que vai acontecer na cuba de fermentação. Até
para equilibrar a quantidade de cada uva é uma operação mais difícil.
Mas uma vez dominada a técnica os vinhos ficam espetaculares.
Outra técnica, muita usada em
Portugal, é o "field blend" (mistura de campo): as diferentes uvas são
todas plantadas numa mesma área, colhidas e fermentadas juntas, mesmo
que algumas variedades ainda não estejam no ponto certo.
Os tintos portugueses,
principalmente do Douro, são elaborados desta forma (há exceções). Na
minha recente visita a Portugal aprendi que num vinhedo destes podem ser
encontradas mais de 20 diferentes uvas, algumas desconhecidas até hoje.
Mas que vinhos!
Se quiser lembrar disto é só acessar estas colunas:
A chave para nada dar errado é
escolher corretamente o que será misturado. Não adianta selecionar dois
vinhos parecidos e nem vinhos com estruturas opostas.
Por exemplo: Cabernet com Sangiovese, ambos reis
dos taninos, ou Pinot Noir com qualquer outra casta tinta (no Chile já
conseguiram...).
Existe uma razão para os vinhos
de Bordeaux serem famosos: o corte bordalês é um exemplo de harmonia
entre castas diferentes: Cabernet Sauvingnon, Merlot, Cabernet Franc,
Petit Verdot, Malbec e Carménère, estas duas últimas em desuso por lá
atualmente. Importante: cada uma é vinificada separadamente e as
dosagens variam consideravelmente por safra e por área de Bordeaux.
3 - para encerrar: vinhos brancos
também podem ser elaborados por corte e o Champagne, apesar de ser
produzido na versão varietal, os clássicos são o famoso corte de
Chardonnay e Pinot Noir, uma uva branca e uma uva tinta!
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