quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Corte, Assemblage, Blend

Qualquer um dos nomes acima tem o mesmo significado: um vinho elaborado a partir uma mistura de diferentes tipos de uvas ou de vinificações em tinto, branco ou rosado. Por analogia, um Varietal é o vinho produzido com uma única casta. O principal objetivo de um enólogo ao decidir por um corte é obter um produto de melhor qualidade.

Não se pode precisar quem foi o primeiro vinhateiro a elaborar uma mistura. Certamente os primeiros vinhos produzidos eram um tipo de corte: os vinhedos, ainda selvagens, eram compostos por diferentes cepas. Num determinado momento, colhiam-se os frutos, mesmo com pequenas diferenças de maturação, e tudo era jogado nas cubas de fermentação.

O vinho de corte como conhecemos hoje decorre de diversos fatores típicos do Velho Mundo. Observando as principais áreas produtoras da França, inegavelmente o berço do vinho moderno, percebe-se que a divisão das terras (vinhedos) é quase uma colcha de retalhos. Não existem gigantescas propriedades como as que são comuns nas Américas, por exemplo.

O famoso Chateau Petrus tem 11 hectares de vinhedos, enquanto um Clos de Los Site, na Argentina, tem gigantescos 850 hectares. Para complicar um pouco, vinhedos são bens de família e estão sujeitos a serem repartidos por herança. Quando isto acontece, o que era pequeno fica minúsculo. Há casos conhecidos em que cada herdeiro foi contemplado com uma fileira de parreiras...

Produzir um vinho a partir destes vinhedos de pequeno porte quase nunca é possível. A alternativa é vender as uvas para um produtor mais estruturado. Mesmo aqueles agricultores que conseguem montar uma pequena cantina e produzem seu próprio vinho, preferem vendê-lo no atacado: o volume é pequeno, não sendo interessante do ponto de vista comercial engarrafar, distribuir e vender.

Outro fator que reforça estas explicações são os Negociants ou Mercadores do Vinho. Empresários que dispõem de alguma estrutura, inclusive uma vinícola, mas que preferem comprar uvas e vinhos no atacado. A partir do que foi adquirido, elaboram suas misturas e as vendem com rótulo próprio. Alguns dos grandes vinhos da França são produzidos assim: Bouchard Père et Fils; Faiveley; Maison Louis Jadot; Joseph Drouhin; Vincent Girardin; Georges Duboeuf; Guigal; Jean-Luc Colombo; Mirabeau; Jaboulet, etc..

Existem diversos tipos de corte e, dependendo da legislação específica do país produtor, um vinho classificado como varietal pode ser um corte, por exemplo: um Cabernet da Califórnia basta ter 90% do volume com esta casta para ser vendido como varietal.

Os cortes mais comuns envolvem duas ou mais castas diferentes, que podem ser vinificadas em separado ou ao mesmo tempo. O conhecido corte Bordalês é o melhor exemplo: em qualquer lugar do mundo significa um vinho elaborado com Cabernet Sauvignon e Merlot, pelo menos, podendo haver mais outras castas como Cabernet Franc, Petit Verdot, Malbec e Carménère. Mas só estas! Se na composição desta mistura entrar uma quantidade de Syrah ou Tannat ou qualquer outra casta, deixa de ser “Bordalês”.

Atualmente estão na moda os vinhos de parcelas ou vinhedos únicos, o que nos leva a uma outra definição de corte: vinhos produzidos com uma única uva, mas de diferentes terroirs. Um bom exemplo são os Catena DV, abreviatura de “Doble Viñedo”. Outra variedade de corte envolve vinhos de diferentes safras. Dois representantes típicos desta modalidade são os vinhos do Porto e os Champanhes.

Apresentamos a seguir outros cortes clássicos:


GSM – abreviatura de Grenache, Syrah, Mourvèdre. Corte típico da região do rio Rhone.


Châteauneuf-du-Pape – também da região do Rhone. A casta Grenache pode ser cortada com até 12 outras, inclusive brancas.


Super Toscanos e Super Piemonteses, são cortes produzidos a partir das clássicas Sangiovese (Toscana) e Nebbiolo (Piemonte) com as mais tradicionais uvas francesas como a Cabernet, Merlot, etc. Durante muito tempo foram classificados como “vinhos de mesa”, mas hoje são o orgulho da Itália.


Amarone, Ripasso, Valpolicella e Reciotto, tradicionais cortes das uvas Corvina, Rondinella e Molinara. O Amarone disputa com o Barolo, o Brunello e o Barbaresco o título de melhor vinho.


Existem infinitas possibilidades, alguns países como Portugal, sempre produziram vinhos de corte: seus vinhedos nunca foram de uma única espécie. Por outro lado, os produtores do novo mundo é que praticamente inventaram o vinho de uma única casta. Mas logo perceberam que a grande arte está no corte: só aqui o enólogo é capaz de mostrar todo o seu potencial.

Dica da Semana:  Um corte bem diferente e saboroso.



Viñedo de los Vientos Catarsis 2013
Um versátil corte de Cabernet Sauvignon (70%) e Tannat (30%), podendo ser usado para harmonizar com costela ensopada, penne aos quatro queijos, risoto de cogumelos, polenta cremosa com ricota defumada, carré de cordeiro, ravioli ao molho branco com parmesão gratinado, espaguete ao ragu de linguiça fresca.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Merlot, eterna consorte ou rival?

Recentemente prestei uma consultoria para um evento gastronômico sugerindo alguns vinhos para serem degustados. A harmonização mais importante deveria contemplar o prato principal, escalopes de filet ao molho de shitake fresco e champignon, com um tinto adequado. A empresa encarregada de fornecer os vinhos ofereceu uma relação com vinhos portugueses do Douro e do Alentejo, Cabernet Sauvignon do Chile e da Argentina, além de duas opções de Malbec.

Eram bons vinhos, mas muito “pesados” para um prato que, apesar da carne, é leve. Qualquer um deles sobressairia, escondendo os delicados sabores do molho. Sugeri como alternativa, um vinho baseado na casta Merlot, o que provocou uma reação de surpresa por parte dos interessados, deixando a sensação que esta nobre casta anda meio esquecida. Mas não deveria ser assim, seus vinhos, invariavelmente, são muito fáceis de beber e agradam aos mais ecléticos paladares.

Preferências à parte, a Merlot é uma das principais varietais dos vinhos de Bordeaux. Na margem esquerda do Rio Gironde, é vista como uma consorte: por ser uma uva mais suave e menos tânica, é usada para domar as características mais agressivas da Cabernet Sauvignon. Na margem direita, principalmente em St. Emilion, o quadro se inverte: ícones como Petrus ou Cheval Blanc são elaborados a partir dela.

Então, de onde vem este ostracismo ou desprezo, embora continue firme em Bordeaux?

Vários fatores contribuíram para isto. Nascida e criada na França, a versátil Merlot foi transportada para diversos países com ótimos resultados quando vinificada, gerando deliciosos varietais ou cortes. Vinhos tão saborosos e agradáveis que se tornaram mania em alguns países das Américas, como nos Estados Unidos, onde houve uma verdadeira avalanche de garrafas de bons vinhos elaorados com ela. No nosso país houve uma tentativa para torná-la a nossa uva emblemática, nos mesmos moldes da Carménère, da Malbec, do Tannat ou da Touriga Nacional. Nossos melhores caldos são elaborados com esta variedade de uva.

Infelizmente esta superexposição ou massificação acabou por gerar efeitos colaterais indesejados como, qualidade duvidosa, excesso de oferta e preços ridiculamente baixos, descaracterizando a nobreza desta casta. Para complicar um pouco mais, um dos primeiros filmes sobre o universo do vinho, que obteve sucesso em todo o mundo, o “Sideways – Entre umas e Outras”, tentou liquidá-la: Miles, um dos protagonistas, afirmava que Merlot não era vinho.

O impacto foi sentido na vinicultura americana, houve uma notada queda na venda destes vinhos, muito embora houvesse uma pegadinha quase no final da narrativa: para Miles, o melhor vinho de sua adega era o mítico Cheval Blanc, um belíssimo corte de Merlot com um quase nada de Cabernet Franc. Esta preciosa garrafa acaba sendo usado para curar um momento de depressão, num copo de isopor e acompanhado de um hambúrguer de lanchonete...

No Chile, um dos grandes produtores desta casta atualmente, os vinicultores acreditavam na existência de uma mutação da Merlot que amadurecia mais tarde. Coube ao ampelógrafo francês Jean-Michel Boursiquot desfazer o engano ao descobrir que eram parreiras da extinta Carménère.

O nome Merlot seria o diminutivo, em francês, de Melre (Melro, em português), talvez por causa de sua cor escura. Carinhosamente chamada de “pequeno pássaro”, produz vinhos exuberantes, apetitosos e aveludados, em contraste com sua rival, Cabernet Sauvignon, com seus firmes e poderosos taninos. Em Bordeaux, uma não vive sem a outra,
Dica da Semana:  Que tal um excelente Merlot?
Casa Lapostolle Merlot 2012
A uva Merlot é uma das grandes especialidades da Casa Lapostolle, mostrando grande caráter varietal e profundidade.

Uma das escolhas mais "sólidas" para a Wine Spectator, este saboroso tinto é elegante, macio e bem equilibrado.

Robert Parker elogiou o corpo "concentrado e harmonioso, com taninos soberbamente maduros".

Premiações: Wine Spectator: 87 pontos (safra 07); Robert Parker: 88 pontos (safra 02).

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Tudo que vocês precisam saber sobre vinhos doces

Um interessante comentário do leitor Antônio Daniel, de Salvador BA, foi o ponto de partida da coluna desta semana. Reproduzo a seguir:
“Existem vinhos tintos doces de qualidade ou são todos ruins tal qual os que encontramos em supermercados”?
O que chamou a atenção foi o “são todos ruins”, uma quase verdade para o consumidor brasileiro que tem uma razão muito particular: a nossa legislação não faz uma distinção entre um vinho obtido a partir de uvas viníferas e os denominados “vinhos de mesa” que são produzidos com uvas comuns, iguais às que compramos no mercado. Isto ocorre por pressão dos produtores dos vinhos de garrafão que dominam as entidades de classe que têm poder de lobby no congresso. A única distinção, do ponto de vista legal, é “Vinho Fino” e “Vinho de Mesa”.
Mesmo sabendo que vamos receber uma quantidade de críticas, volto a afirmar que uma bebida obtida através da fermentação de um suco de uvas comuns NÃO É VINHO! Que arranjem outro nome, por exemplo, “bebida fermentada de uva”, “cerveja de uva”, etc.
Vinho, de verdade, tem que ser elaborado com uvas do tipo “vitis vinífera”. Para demonstrar isto de forma cabal só precisamos de um bom dicionário:
Vitis: Videira, vite, vinha, vinhal, vinhedo ou parreira (do latim Vitis, L.)
Vinífera: que produz vinho.
Provavelmente algum leitor mais atento já deve estar curioso sobre as diferenças entre a Vinífera e a comum, conhecida como Labrusca ou uva americana. Existem algumas, mas a que nos interessa é a facilidade em se obter a fermentação de um mosto. As viníferas, se colhidas no ponto certo, fermentam sozinhas. As outras precisam de uma ajuda para iniciar este processo.
Como fazem para fermentar a uva comum então?
O mais simples é acrescentar açúcar, muita quantidade se o produto final for do tipo suave. Se não conseguirem a cor ou o sabor desejado, seguem acrescentando melado, molho de soja, pipi de gato, vinho velho, tinta de sapato e o que mais tiver à mão. Entenderam porque dá dor de cabeça no dia seguinte?
Vinho “suave” é intragável, “rascante” não serve nem para lavar o cachorro.
Vamos falar de vinhos doces verdadeiros cuja elaboração é muito mais complexa do que a do vinho seco. Apresentaremos, a seguir, os diferentes métodos utilizados que podem ser focados na concentração da uva para que fique muito doce ou em processos de elaboração na cantina. Uma destas técnicas, a Fortificação, foi abordada na coluna da semana passada. Em todos os casos o produto final é de alta qualidade, a quintessência do vinho.
As técnicas, abaixo, enfocam na concentração dos açúcares na uva:
1 – Deixar as videiras serem atacadas pela Botrytis Cinerea, a podridão nobre. Isto só é possível quando a temperatura e a umidade estão adequadas. Este fungo extrai líquido das uvas deixando-as extremamente doces, mantendo a acidez que é desejável. O controle deste processo é dificílimo e muito delicado. Alguns dos mais famosos doces são elaborados desta forma;
Exemplos: Sauternes, Barsac, Tokaji, Ausbruch, Bonnezeaux, Quarts de Chaume, Coteaux de Layon, Sélection des Grains Nobles, Beerenauslese, Trockenbeerenauslese.
2 – Empregar um processo denominado Passerillage, uma espécie de passificação obtida com a uva ainda na videira. Muitos agricultores torcem o caule do cacho, sem rompê-lo. A uva deixa de receber os nutrientes e acaba secando, com alto teor de açúcar;
Exemplos: Jurançon, Riesling Australiano do tipo “Cordon Cut”.
3 – Colheita Tardia. As uvas são colhidas tardiamente, quando já estão muito maduras. Dependendo da região pode ocorrer a podridão nobre ou a passerillage. Esta técnica é muito empregada nos vinhos da América do Sul.
Exemplos: Spätlese, Auslese, Vendange Tardive, Late Harvest, Cosecha Tardia.
4 – Passificação. As uvas colhidas são colocadas para secar em esteiras de palha ou caixas de madeira, da mesma forma como se obtém a uva passa que estamos habituados a consumir.
Exemplos: Amarone, Vin Santo, Recioto, Pedro Ximénez, Passito.
5 – Congelamento. Só é possível em regiões com clima muito frio. As uvas são deixadas nas parreiras durante o inverno. Como o açúcar não congela, ficam extremamente doces. Em regiões de clima mais tropical é possível obter-se este efeito através de criogenia.
Exemplos: Eiswein, Icewine.
As técnicas seguintes são aplicadas durante ou após a vinificação.
6 – Resfriamento e filtragem. Consiste em baixar a temperatura do mosto em fermentação de tal maneira que ela estanca. Em seguida filtra-se o líquido para remover os resíduos da levedura, deixando o açúcar concentrado.
Exemplos: Kabinett, Moscato d’Asti, California Blush, Prosecco.
7 – Embora seja um tabu, muitas vezes não permitido por lei, a adição de açúcar é comum na elaboração de espumantes. A técnica é chamada de “dosagem” (licor de expedição), sempre aplicada depois da segunda fermentação, com o objetivo de corrigir o açúcar residual ou elaborar um produto final mais doce. Quando um espumante não recebe nenhum açúcar adicional é vendido como “Brut Nature” ou “Zero Dosage”.
Não precisamos ser experts para perceber que vinhos doces exigem muito mais trabalho e dedicação para serem elaborados. Por esta razão são muito caros e, quase sempre, vendidos em meia garrafa para terem preços competitivos.
Em Setembro de 2011, publicamos uma série de 3 partes sobre os vinhos doces. Bem diferente do texto de hoje, contamos as histórias por trás destas delícias que, definitivamente, adoçam a vida. Para quem ainda não leu, eis os links:
Dica da Semana:  um Ice Wine bem brasileiro, o Vinho do Gelo!


ICEWINE Pericó (Cabernet Sauvignon)
Vinho licoroso elaborado com uvas colhidas maduras e congeladas naturalmente nos vinhedos temperatura de -7,5º C.
Aroma intenso e muito complexo, com forte presença de frutas como uva passa, figo seco, tâmaras secas, ameixa seca e um discreto aroma de goiaba. No palato é doce, com ótima acidez e persistência. Deve ser consumido entre 9º C a 11ºC.
Harmonização: sobremesas à base de pêra e frutas secas, queijos azuis Roquefort e Gorgonzola, queijos de fungo branco Brie e Camembert, Foie gras. É um vinho de meditação e portanto pode ser degustado e apreciado sem nenhum outro tipo de alimento.
Garrafa de 200ml.